Um professor, um livro.

O NARIZ


NIKOLAI GÓGOL
As últimas férias do Verão trouxeram-me o reencontro com Nikolai Gógol, o famoso autor do belíssimo Almas Mortas. Acabei o Siddartha, do Hesse e fiquei desencantado. Como sou a pessoa menos auto – sugestionável que conheço e, apesar de Hermann Hesse ser um dos meus heróis da literatura, o famoso Siddartha deixou-me verdadeiramente desiludido, ainda que, vox populi dixit, esta seja a obra - prima de Hesse.

Ora, após duas semanas e meia na cosmopolita Marselha rumei a um refúgio, sempre junto ao Mediterrâneo, numa casa de amigos lisboetas, em Taormina, na Sicília onde, para além do silêncio e beleza ímpares da ilha, os livros são também paixão dos meus amigos e, uma vez aí, aproveitei para remexer no que por lá havia...triste e inconformado com o balde de água fria do Siddartha, levei Moravia comigo (sempre o meu “muso” inspirador) e uma antologia de contos do meu Eçazinho. No entanto, ao explorar a biblioteca do “refúgio”, passei os olhos por umas coisas da Oriana Falacci (pura leviandade...), li uns poemas do José Régio; deliciei-me com algumas das Fábulas do La Fontaine e, finalmente, após ter relido um dos mestres do absurdo, Boris Vian, no seu Morte aos Feios, segui na senda do absurdo e li, finalmente, O Nariz, de Gógol.

Bom antídoto para fugir à estranha normalidade dos dias que correm e que são, para mim, o verdadeiro absurdo, é deixarmo-nos transportar para a literatura do absurdo ou do surreal, inofensiva, genuína e verdadeiramente libertadora pois que nos obriga à introspecção e questionação, enquanto nos faz rir desalmadamente. Entre Gógol e Boris Vian, duas referências neste tipo de literatura (que é tudo menos light...sendo precisamente o oposto, heavy!), há mais de 100 anos de separação mas, podemos dize-lo, que ambos estão ligados pois Gógol é, sem dúvida, um precursor do surrealismo. Para mais, é um escritor que viveu na tenebrosa Rússia czarista da 1.ª metade do séc. XIX e viu, por diversas vezes, as suas obras serem esventradas pela censura e pelas contingências da conservadoríssima sociedade russa de então. No entanto, homem viajado que foi, filho da nobreza fundiária ucraniana, a sua mescla de influências vai desde os românticos do 1.º quartel de oitocentos até aos impressionistas que iam começando a aparecer por volta do mesmo período, passando pela literatura licenciosa que assolava a Europa desde o séc. XVIII.

O Nariz é a incrível história de um homem que, um dia, acorda e repara que perdeu o nariz! Na história, há várias pessoas envolvidas...o barbeiro Iakovlévitch, as senhoras Tchekhatariova e Grigoriévna, entre outras. Todas elas, na mente do “desnarizado”, são suspeitas. A teoria da conspiração está instalada! A determinada altura, apercebemo-nos que há duas histórias distintas e quase que perdemos o fio à meada. Este nariz desaparecido, que provoca a fúria do acessor do colégio local, Kovaliov, é a peça do absurdo desta história. Para além de ganhar vida, ganha traços de ser humano e torna-se um snob. Kovaliov desespera e somos atingidos por uma profunda compaixão por este infeliz, porque não nos imaginamos em situação de desespero tão pungente. Todavia, rimos como perdidos pelas situações completamente inesperadas que vão surgindo com Kovaliov e o seu nariz.

Gógol bem o diz, a determinada altura da passagem desta obra: “Grassa neste mundo o absurdo completo.”; absurdo entendido como o que nos parece normal, trivial e tido por aceite. Esta alienação, que George Orwell já havia previsto no seu O Triunfo dos Porcos e, melhor ainda, no seu 1984 está, sem dúvida, instalada nos nossos dias e raras foram as vezes a que se assistiu, na história do ser humano, a uma tamanha loucura colectiva, disfarçada de uma aparente normalidade. Para quem sente e já se apercebeu do que se está a passar e que é, pelos vistos, indelével, nada melhor que rir sempre que pode e ler um bom mestre do surrealismo...Gógol, no seu O Nariz, atinge com uma mestria exemplar, um pico de surrealismo, comparável a Boris Vian, André Breton ou Jean Cocteau. O livro é pequenino, está impresso numa belíssima edição da Assírio e Alvim e a tradução é excelente. Toca a rir, minha gente! E que os livros fiquem convosco!
Professor Luís Cravo





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